Que há uma “enorme carga fiscal” sobre os rendimentos do trabalho, José Abraão não nega, mas atira: de que servirá focar integralmente a folga orçamental no alívio desse imposto, se, depois, a inflação come “qualquer aumento” dos salários líquidos?
Em entrevista ao ECO, o secretário-geral da Federação de Sindicatos da Administração Pública (FESAP) defende que, no Orçamento do Estado para o próximo ano, a valorização dos ordenados deve ser a prioridade, sendo que acredita que melhorar os vencimentos no setor público dará o exemplo para que o mesmo aconteça no privado.
A FESAP apresenta esta sexta-feira o seu caderno reivindicativo para o próximo no ano e os aumentos dos salários reais estão em destaque. Ao ECO, o dirigente sinaliza também que vão defender uma atualização acima dos sete euros do subsídio de refeição.
Em entrevista, José Abraão fala ainda sobre a multiplicação de greves e protestos em vários setores do Estado e garante que a negociação com o Governo não está a falhar. Até está melhor, assegura. E alerta: “Aquilo que, muitas vezes, não se consegue à mesa das negociações, não se consegue, depois, na rua.”
Assinaram em outubro um acordo com o Governo, que prevê aumentos salariais de 52 euros por cada ano da legislatura para os funcionários públicos.
O Orçamento do Estado está à porta. A FESAP está satisfeita com esse aumento, quanto ao próximo ano, assinamos esse acordo, porque contempla um conjunto vasto de medidas que tem como objetivo valorizar os salários e as carreiras, mas também rever o estatuto do pessoal dirigente, as carreiras não revistas e um conjunto de outras matérias, como o SIADAP [sistema de avaliação de desempenho da Administração Pública], que para nós é extremamente importante.
O objetivo era tornar as coisas um pouco mais previsíveis para os trabalhadores da Administração Pública, mas também havia um foco nos salários, de modo a tornar mais apetecível o emprego público. Para nós, os salários são tudo. A política fiscal é sempre muito importante, porque temos uma carga enorme sobre o rendimento do trabalho. Mas de que servirá reduzir o IRS em 1%, quando a inflação come qualquer aumento salarial? Por isso, pomos sempre um grande foco no aumento até ao final da legislatura dos salários, para que possam ser mais competitivos.
O aumento de 52 euros é competitivo, quanto a 2024?Os 52 euros foram competitivos, porque se orientou muito para as carreiras gerais. É evidente que é insuficiente para aqueles trabalhadores que, tendo salários acima dos 1.500 euros, tiveram um aumento de 3%. A inflação foi 7,8%. Este ano, tudo indica, anda à volta dos 5%. Daí que a nossa aposta seja claramente, não desvalorizando a questão da fiscalidade, o aumento salarial, que tem de ser inevitavelmente acima da inflação e tem de permitir aumentos reais de salários.
De forma clara, o que vão pedir ao Governo, na reunião preparatória do Orçamento do Estado?
Vamos dizer ao Governo que estamos na altura de contemplar todos os trabalhadores com aumentos salariais, de modo a que os salários não se continuem a degradar. [Em termos reais], quem teve um aumento de 52,11 euros hoje ganha menos do que ganhava há um ano atrás. Daí que, sem falarmos em percentagens, dizemos que são precisos aumentos reais, acima da inflação, e haveremos de estabelecer um mínimo, que vamos decidir já na reunião de secretariado nacional, que pode andar à volta dos setenta ou oitenta euros.
Falou na subida do custo de vida. Vão defender uma nova atualização do subsídio de refeição?
O subsídio de refeição deu um salto importante no ano passado. Passámos de 4,77 euros para seis euros. Todos os anos em que houve negociação para a Administração pública, procuramos alterar o subsídio de refeição. Houve um acréscimo muito grande dos bens alimentares. Com certeza haveremos de apresentar propostas acima dos sete euros por dia para os trabalhadores da Administração Pública. É também importante dizer que há suplementos que não são alterados há anos, como é o caso das ajudas de custo. Hoje há trabalhadores que estão a pagar para fazer trabalho externo.
A FESAP apresentará uma proposta ao Governo. Pelo menos, contemplem aquilo que foi a evolução dos preços.
Como é que tem estado a relação da FESAP com o Governo, desde que o PS conseguiu a maioria absoluta? Sentem que tem havido mais negociação e menos processos de consulta aos sindicatos?Consideramos que, no tempo da geringonça, falhou muito a negociação coletiva na Administração Pública. Em regra, procuravam enviar para o Parlamento a discussão destas matérias. A partir do momento que celebramos o acordo, tem melhorado muito significativamente a negociação coletiva, seja no âmbito da negociação geral anual, seja no âmbito setorial.
Ainda assim, tem havido imensas greves em vários setores da Administração Pública.
As greves são uma forma das pessoas manifestarem o seu protesto. Mas também muitas vezes assentam naquilo que é o nacional comentadorismo. Muitas vezes, em vez de explicarem as medidas – alguns não terão sequer capacidade para as compreender –, procuram deitar mais lenha na fogueira, para que, depois, o protesto se verifique. Muitas vezes, porque as pessoas também não têm bem presente aquilo que é o resultado da negociação. Temos de valorizar o que é valorizável. A negociação tem sido muita e há de continuar pelos compromissos que temos. É evidente que, da nossa parte, seja no âmbito da negociação geral anual, seja no âmbito setorial, queríamos sempre mais, porque tivemos dez anos parados. Muitas vezes os resultados ficam aquém do que seria minimamente desejável para conferir mais equilíbrio ao emprego público.
Não vê a multiplicação de greves como um sinal de que a negociação está a falhar e de que há intransigência da parte do Governo?
Não. A negociação está a funcionar. Os resultados não são muitas vezes aquilo que queremos. É verdade. Mas também há de chegar um momento em que tem de se perceber que a negociação também é isto: é um compromisso.
Por exemplo, se o Governo negar os aumentos salariais que a FESAP defende, admitem ir para a rua e fazer greves?
Como sempre. Quando apresentamos propostas e vamos para a mesa da negociação, vamos sempre de boa-fé e numa perspectiva séria. Não pedimos tudo o que eventualmente deveria ter sido atribuído aos trabalhadores da Administração Pública. Se considerarmos que os trabalhadores continuarão na senda da perda e da desvalorização dos seus salários, da perda e desvalorização das suas carreiras e do emprego público, certamente não temos alternativa que não dizer ao Governo que não foi possível chegar a um entendimento e os trabalhadores dirão se querem ir para a luta. Por exemplo, estamos solidários naturalmente com os professores, como estamos com os médicos e os enfermeiros.
O IRS tem feito muita tinta correr e gerado muito debate, nomeadamente entre o PS e o PSD.
Recomenda ao Governo mais cautela ou ambição, tendo em conta todo o enquadramento económico e internacional?
Temos uma enorme carga fiscal sobre os rendimentos do trabalho. É preciso que se reduza essa carga fiscal, mas há aqui uma equação que devemos ter sempre presente: os nossos serviços públicos dependem das receitas que o nosso Estado tem pela via fiscal. Nesse quadro, a redução fiscal é importante, mas temos de ter em consideração também que queremos a melhoria dos serviços.
Mas a receita fiscal tem aumentado, nomeadamente à boleia da inflação. Não é o momento de reduzir o peso dos impostos sobre os salários?
Exigimos do Governo aumentos reais dos salários. A folga [orçamental] que existir deverá ir para aumentar os salários e torná-los competitivos, evitando que as pessoas saiam. Qualquer redução no IRS é por nós aplaudida. É sempre bem-vinda. Mas a questão essencial é esta: se houver mais escalões e nos reduzirem 1% no pagamento do IRS, mas o nosso salário se degradar 2% ou 3% por intermédio da inflação, compreenderá que não chegará para nós que, afinal de contas, se tenha aumentado um pouco o rendimento líquido do trabalhador. Somos a favor da redução fiscal. Somos muito a favor do aumento dos salários reais dos trabalhadores da Administração Pública.
O IRS beneficia todos, público e privado. Os aumentos salariais são apenas para os funcionários públicos.
Também beneficiam os privados. Ainda sou do tempo em que se negociavam salários e o referencial para a negociação coletiva na Administração Pública arrastava o setor privado. O setor privado, quando quer reter competência, paga aos trabalhadores. A minha convicção é que, quanto mais melhorarmos os salários da Administração Pública, isso vai ter impacto real na negociação coletiva no setor privado.
Havendo folga, a prioridade deveria ser aumentar os salários do público, em vez de baixar o IRS?
Não é em vez de baixar o IRS. Acho que não é aceitável um trabalhador ter um vencimento de 1.300 euros ver 15% ir para o IRS, mais 11% vão para a Segurança Social e mais 3,5% vão para a ADSE. Se é verdade que o IRS é para toda a gente, também é verdade que os aumentos dos salários influenciam [o privado].
Quanto ao IRS Jovem, como é que se evita que uma pessoa com 27 anos acabe a ganhar menos, em termos líquidos, do que alguém que tem 26 anos e direito a um desconto no imposto?
Melhorando os salários como estava a acabar de dizer, mas também reduzindo o IRS nos anos de vida em que as pessoas mais necessitam de ter rendimento para estruturar uma vida. Custa-me muito perceber como é que é possível um trabalhador da Administração Pública, seja de que área for, com um vencimento de 1.000 euros ou 1.300 euros, só tenha dinheiro para viver num quarto. Isto é um retrocesso tão significativo que só tem que nos motivar a nós, enquanto trabalhadores e sindicatos, para dizer ao Governo que estamos de acordo quando diz que é preciso produzir aumentos salariais, mas então produzam-nos efetivamente. Tudo o resto – quer seja a redução fiscal, os aumentos de subsídios de refeição, até algumas outras contrapartidas – tem de ser naturalmente acessório. Só com uma política de salários mais competitivos é que vamos sair deste modelo económico onde estamos hoje.
Sobre o rejuvenescimento, tem sentido vontade do Governo de reverter o cenário?
Sim, porque não tem alternativa.
Como?
Por exemplo, o recrutamento dos mais jovens e a valorização dos técnicos superiores no ano passado, mas que não pode parar agora.
Há estudos que indicam que os jovens querem modelos de trabalho mais flexíveis. A questão das despesas do teletrabalho está resolvida?
Não. Houve uma alteração ao Código do Trabalho que pressupunha o pagamento de despesas. Isso até como incentivo. Estamos recetivos para as negociar, porque para nós o que é importante é a produtividade e o trabalho que se faz, independentemente de onde se faz. Há muito a fazer, no que diz respeito à organização do tempo de trabalho. Falou-se na semana de quatro dias.
Onde é que está o teste?
Há algum sinal novo a esse respeito?
Sempre dissemos que era necessário que houvesse testes, que fossem feitos com rigor. Queremos ver como é que daqui para a frente, com a digitalização e a inteligência artificial, como é que vamos organizar-nos. Estou convencido de que haveremos de fazer caminho, para que daqui a alguns anos os mais jovens queiram vir para a Administração Pública.
Como disse, há legislação que determina o pagamento das despesas do teletrabalho.
Afinal, porque é que não estão a ser pagas na Função Pública?
O Governo já nos disse que, para já, não estaria muito disponível nem virado para isso. Era urgente que na Administração Pública se regulasse o teletrabalho.
No que diz respeito às carreiras, temos de falar da avaliação de desempenho e da revisão do SIADAP que está em curso. O Governo quer acelerar as progressões, mas mantém as quotas. Faz sentido?
Sempre dissemos que as quotas são o pior instrumento que temos para reconhecer o mérito. Cheguei até a dizer que era proibido ser estudante de Administração Pública. Muitas vezes são os compadres, amigos, afilhados ou próximo disso que acabam por ser os excelentes. As quotas são um fator de travagem e de limitação. O Governo insiste na manutenção das quotas. Dizemos que era razoável que o maior número possível de trabalhadores pudesse chegar ao topo das carreiras ao fim de 40 anos de serviço. Estamos a negociar o SIADAP, valorizamos o que o Governo já apresentou, mas é preciso mexer nas quotas. Com este ambiente negocial, acreditamos que será possível aproximar posições antes de fechar o diploma.
O Governo quer esperar até 2026 que as mudanças ao SIADAP produzam efeitos. Que parece à FESAP?
Não faz sentido absolutamente nenhum estar a criar expectativas de um SIADAP eventualmente ser melhor para aplicar dois anos depois. Portanto, aquilo que a gente diz ao Governo é que os efeitos não têm de ser em 2026. Terão que ser antes. E o Governo vai dizendo para fazermos propostas. Chegarão essas propostas, admitindo que se encontre aqui um caminho que permita a produção de efeitos mais cedo.
De um ponto global, como é que são hoje tratados os funcionários públicos pelo empregador Estado?
O Estado empregador nunca foi um bom exemplo, salvo honrosas exceções. Hoje não sentimos que somos tratados como devíamos ser. Governar é difícil. Ser sindicalista é mais, porque temos que dar voz ao descontentamento e aos problemas que os nossos associados têm. Quando começamos a pensar que há grupos que são e que deviam ter mais direitos que os outros, começa a ser muito complicado porque, afinal de contas, recebemos todos do mesmo Orçamento do Estado. Aquilo que desejamos é que todos estejam bem, tenham melhores salários e melhores carreiras, de onde pode resultar uma melhor motivação. Sempre procurando valorizar a negociação coletiva. Lutaremos quando temos de lutar. Mas aquilo que, muitas vezes, não se consegue à mesa das negociações, não se consegue, depois, na rua.
eco.sapo.pt – Isabel Patrício – Editora do Trabalho by ECO
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